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Como um rumor de corrente forte, ao fundo, que não vemos mas adivinhamos pelo som vago que não pára, sabemos que a Síria continua a ser mais e mais arrasada, todos os dias. E que, ali, como no Iraque e Afeganistão, o poder do louco Estado islâmico continua pouco menos que imparável. E que os meandros da política internacional continuam os mesmos, escorregadios e hipócritas, cheios de danos colaterais, como esta criança aqui, atingida pelo raid russo de ontem, em Aleppo.
O que terá pensado ela quando ouviu o estrondo que caiu do céu em chamas? O horror que lhe secou todas as lágrimas possíveis e lhe congelou a expressão, num terror que lhe desfez a infância para sempre em pequenos pedaços, como um vidro estilhaçado que nunca mais é possível colar?
Isto está a acontecer.
Ontem já tinha ficado nauseado com a impressionante reportagem de Henrique Cymerman sobre as mulheres e crianças violadas e os homens decapitados por esse braço armado do Mal, chamado Daesh, uma espécie de encarnação da maldade da Idade das Trevas dos pesadelos para a realidade do século XXI. E eu nunca vou esquecer os relatos que ouvi, na primeira pessoa, num campo de refugiados na Macedónia, com famílias de olhar igualmente perturbador de tão triste, desorientado e sem esperança.
Esta imagem é um daqueles despertares da nossa espuma dos dias. Isto está a acontecer. Meu Deus, isto está a acontecer.
E Deus, a propósito? Um amigo, crente como eu, dizia-me ontem que "Deus não tem nada a ver com isto".
Eu acho que, se não tem, devia. Que multiplicar pães e transformar água em vinho, já foi chão que deu uvas, agora a urgência é real, não dá para metáforas. A luta contra o mal nunca está ganha, como se vê. Então e o Bem? Que força terá, ao dia de hoje?
Pobre criança. Dá vontade de pegar nela, limpá-la, curar-lhe as feridas, procurar a família que ainda terá, dar-lhe uma terra de paz para poder crescer, em segurança e com dignidade. Longe deste nojo, deste genocídio, desta loucura. Uma criança como as nossas, que teve o azar de nascer ali, naquele inferno. Uma sociedade que não trava esta praga maligna, uma civilização que permite este horror, só pode ter ser vista assim, com o olhar desta criança: vazio de esperança, incrédulo, só cheio de tristeza.